Não é que o texto parecia uma fotografia, ele o era.
O estranho fruto antirracista de Billie Holiday
Mais de 60 anos depois de sua morte, o tema fetiche de Billie Holiday, ‘Strange fruit’, ressurgiu como hino dos protestos contra o racismo nos Estados Unidos.
Mas o que tinha aquela canção que tanto incomodava os brancos? A letra não insultava a supremacia dominante nem explicitava protesto algum contra a opressão em que os negros viviam. Fazia algo pior: descrevia de maneira crua o panorama vomitivo que havia depois do linchamento de dois homens negros, a ponto de excitar os odores da cena e desenhar a feição desconjuntada dos cadáveres: “Das árvores no sul, pende uma fruta estranha. / Sangue nas folhas e sangue na raiz. Corpos negros balançando na brisa do sul. / (…) Os olhos esbugalhados e a boca torta. / Aroma de magnólias, doce e fresco, / e o repentino odor de carne queimada. / Aqui está a fruta para que os corvos a colham, / (…) para que o sol a apodreça, para que as árvores a soltem. / Esta é uma colheita estranha e amarga”.
Não é que o texto parecia uma fotografia, ele o era. A canção havia sido criada em 1938 por Abel Meeropol, um professor judeu de ensino médio, e se limitava a reproduzir um instantâneo da imprensa que falava de um linchamento acontecido em Marion, Indiana, em 7 de agosto de 90 anos atrás. Naqueles tempos os linchamentos não só aconteciam, eram comemorados. Eram eventos premeditados e não resultantes de um arrebato de um ou vários ofendidos que, clandestinamente, faziam justiça com as próprias mãos. Este e muitos outros detalhes do contexto histórico estão em Con Billie Holiday. Una biografia coral, de Julia Blackburn, que cita o jornalista e escritor H. L. Mencken: “[No sul dos EUA] Os linchamentos ocupavam o lugar do carrossel, do teatro, da orquestra sinfônica e de outras diversões habituais”. A selvageria era tal que se fretavam ônibus para levar o público, que davam gritos de incentivo e até cartões postais do resultado eram editados como lembrança.
…Billie Holiday nunca assistiu a um linchamento, mas certamente o seu próprio lhe bastou. Antes de se tornar famosa, cantou na orquestra de Artie Shaw, formada por brancos. Na turnê pelo sul dos EUA de 1938, a cantora não podia dormir no hotel de seus colegas —se não havia hotel para negros, ela dormia no carro— e também não podia usar os banheiros públicos dos bares. Em Nova York as coisas não eram melhores para ela: entrava e saía pela cozinha do hotel Lincoln e durante os intervalos não podia ficar na sala, mas tinha de aguardar em um quartinho o início da apresentação seguinte. Mais? Um programa de rádio contratou a orquestra de Shaw para animar as horas, mas a marca que o patrocinava se recusou que ela cantasse porque era negra. Holiday teve de ceder esse trabalho a Helen Forrest, uma melosa voz branca.
Para quem não viu, não leu e não assistiu, veja, leia e assista Billie Holiday.
E como bônus duplo, “strange Fruit” com Nina Simone.
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